Magic, a Comunidade e a Toxicidade

Bruno ‘Toten’ Benatti
Juiz Nível 1, Goiânia – GO

Bruno ‘Toten’ Benatti
Juiz Nível 1, Goiânia – GO

De diversas formas, jogar Magic: The Gathering é estar envolto de pessoas (com exceção do Magic Arena que ainda não permite interação aberta com o adversário). E estar cercado de pessoas é, também, um exercício de convívio e interação social. Nesse ambiente, temos pessoas diversas e seus universos próprios, que mudam constantemente devido a experiências mundanas de todo calibre possível.

O jogo na vida de um ser humano pode ter diversas funções como fuga, entretenimento, desafio, conexão, e com o Magic isso quase sempre envolve, também, dividir essa experiência com outras pessoas e suas motivações.

Esses fatores tornam o ambiente onde se joga em um refúgio, onde o jogador se conecta com outras pessoas que têm as mesmas afinidades, podem falar do mesmo assunto, e se conecta com um ambiente que ele fala do seu jogo, ouve do seu jogo, e essa partilha é o fruto a ser colhido. Isso é incrível, mas não é um mar de rosas.

A Conexão

Existe um fator curioso sobre essa conexão, que é o que eu chamo de ‘Bolha Social’. Nesse exemplo, a Bolha Social existe quando indivíduos que tem essa afinidade e já simpatizam entre si, criam um ambiente divertido, sedutor e animado, mas não necessariamente inclusivo, e em qualquer situação onde a comunidade em questão não é muito grande, temos pessoas que não sabem que não são receptivas e pessoas que não sabem se misturar. As razões são as mais diversas, mas notar isso é um exercício de empatia.

 

A Empatia

É preciso, homeopaticamente, exemplificar a empatia nesses ambientes, de forma que o exemplo marque um viés de conduta sem parecer demagogo, sem a intenção de moralizar ou diminuir aqueles que não o fazem. Apenas dar o exemplo é um meio de pavimentar o caminho entre os recém chegados e os veteranos, a fim de se construir um bom ambiente pra se conviver e jogar. Eu acredito que todas as partes tem função ativa nisso. Acredito que ser juiz é assumir um papel de conversão desses valores em atitudes, junto ao papel que pode e deve ser desempenhado também pelos lojistas e incentivado entre os jogadores. Mas, sempre tem os que não se importam com isso, se colocam acima de questões como essas e julgam ser tudo trivial.

 

O Tóxico

O termo é agressivo, na minha opinião, mas até define bem como funciona. O membro de uma comunidade que é tóxico acaba por agir de forma a banalizar os fatores que motivam uma pessoa a se integrar a uma comunidade, e isso desconfigura toda a motivação da pessoa, intimida, expõe ela a uma nova busca por adesão e tem que lidar com a frustração de uma viagem perdida.

O peso do jogador ou do ambiente tóxico fica na forma com que ele enreda as pessoas. Geralmente, nenhum membro da comunidade quer levantar sozinho a bandeira branca e passar a mensagem de receptividade e camaradagem dentro de uma comunidade que está tóxica, pois sabe que é bem provável que ele seja excluído por refutar o organismo em que ele está.

Não existe jogador tóxico isolado, ele sempre está dentro da comunidade e esta mesma comunidade legitima a forma com que ele se comporta. Mas não é por pouco, afinal, geralmente são pessoas carismáticas, ativas, de opinião forte e pungente, o que cria laços, cativa olhares e atenções e fica fácil não notar que uma pessoa enérgica e vibrante acabe sendo tóxica. Não é regra, mas se mostra comum.

 

A Solução

Claro que todos esses parâmetros são sutis, mas o peso varia de pessoa pra pessoa. Assim como uma pessoa vem e vai sem se importar muito, outra pessoa vem e vai com uma decepção enorme, e ao invés de tentar medir esses fatores nós devemos apenas preveni-los.

Acredito que fazendo o possível pra receber bem todas as pessoas que chegam no ambiente pra jogar e se divertir conosco, em uma ação conjunta com o máximo de pessoas que der unidas com isso, criamos um ambiente confortável para que as pessoas se aproximem e possam ficar a vontade.

Talvez elas também sejam tóxicas, mas que o ambiente e o bom convívio não legitimem essa parte do universo que habita esse ser humano, e que sua centelha possa despertar o melhor possível em prol da construção de uma comunidade receptiva, calorosa, divertida e inclusiva.

Em um artigo recente, David Lyford-Smith cita o seguinte:

“A percepção pública deve ser uma prioridade clara para os juízes. E essa percepção deve ser conduzida não pelo marketing, nem por se inclinar às preferências da opinião pública, mas pela construção de uma representação de qualidade e imparcialidade através de nossas ações individuais e coletivas.”
– David Lyford-Smith, N3, United Kingdom, 16 de Janeiro de 2019, tradução livre.

Essa constatação é um norte poderoso sobre a forma com que nós, como membros da comunidade e representantes da mesma, funcionamos como parte do organismo e devemos servir como baluartes do bom comportamento e conduta, exemplificando como se constrói e mantém uma comunidade saudável e receptiva.

Não só através do exemplo mas com a aprovação dos jogadores, a comunidade enraiza qualidades e evolui a perspectiva de que um bom ambiente faz bem para todo mundo. A premissa deve ser coletiva, construída no esforço individual, com enfoque em respeito e na valorização desse bem estar que, felizmente, prevalece sobre a toxicidade. A balança oscila muito e para ela pender para algo bom ou ruim, basta um empurrãozinho.

Precisamos fortalecer o esforço que nos mantém unidos e nos divertindo.

Ainda no seu artigo, David encerra com a construção de nove princípios do que é ser um Juiz e como esse papel pode e deve ser desempenhado. Chamo a atenção para os tópicos sete e oito endossando o nosso tema:

7. Reconhecer sempre que juízes são parte das comunidade do Magic, não alheio a ela
Ou seja, somos parte do complexo organismo que é a comunidade dos jogadores. Somos jogadores também, e foi assim que tudo começou para cada um de nós.

8. Agir para com os interesses dos jogadores, independente de quaisquer influências externas
Nossa função como juízes é focada no jogo e nos jogadores, e não devemos nos deixar guiar por qualquer interesse ou proposta externa alheia a esses objetivos. Quaisquer atitudes em contradição a esses princípios deve ser desencorajada.

O Testemunho

Os entraves com a toxicidade não são exclusivos de uma comunidade ou outra. É uma característica comum dentro dos ambientes onde há convívio e interação entre pessoas, sabendo que diversos jogadores, lojistas e juízes lidam diariamente com isso. Sendo assim, busquei testemunhos de outros juízes a fim de colher mais referências e experiências que possam ajudar a compreender a profundidade do problema.

Segue abaixo alguns desses relatos:

 


Andres Pipet
Juiz Nível 1, Vitória – ES

Andres Pipet
Juiz Nível 1, Vitória – ES

Posso dizer que fui de tudo nesse universo: jogador, vendedor, lojista, dealer, grinder e agora juiz. Me foi totalmente inesperado viver com a palavra tóxico dentre um jogo que tanto amo, porém ela é mais rotineira que você possa imaginar. É natural de nós reclamarmos quando não obtemos sucesso em nossas ações. Quando não controlamos a nós mesmos passamos a ver como irrelevante e sem coerência, o sucesso dos demais. Foi esse o ponto que sofri. A toxicidade da comunidade em que estou vivendo atualmente tem por hábito dizer : “Foi sorte, pois eu ‘ziquei’…” ou “…você teve melhores draws e seu top deck foi o que lhe salvou.”  Sorte é, de fato, um dos elementos do jogo. Mas treino, leitura, foco, percepção, coragem e planejamento são fatores que devemos respeitar. As ações fundadas nesses pilares definem como cada jogador irá se colocar frente ao seu oponente. Ouvir que somos sortudos vai contra as diversas horas que nos preparamos, as conversas que tivemos para definir a jogada correta contra o oponente ou deck chave do campeonato. O que é tóxico vai lhe diminuir apenas se você permitir. Retribua com gentileza e a certeza que ambos realizaram uma grande partida e que por todos os fatores, um de vocês venceu.
Reconheça as suas falhas, e trabalhe nelas, elas ensinam demais.


Wesley Doelinger
Ex-Lojista e Juiz Nível 1, São Bernardo do Campo – SP

Wesley Doelinger
Ex-Lojista e Juiz Nível 1, São Bernardo do Campo – SP

Em meus três anos e pouco como lojista, o menos tóxico é o juiz.
Já a dupla jogador-lojista cria um ciclo de toxicidade que se retro-alimenta. Jogador fica tóxico por ter sido tratado assim e lojista fica tóxico por estar no meio de jogadores tóxicos e aí repete.
Quando eu e minha esposa abrimos a loja, queríamos um ambiente livre da toxicidade que encontramos em outras lojas. Isso direcionou a loja enquanto ela existiu.

 


Eduardo ‘Noctuno’ Oggioni
Juiz Nível 1, São Paulo – SP

Eduardo ‘Noctuno’ Oggioni
Juiz Nível 1, São Paulo – SP

Minha primeira experiência foi com uma loja tóxica, na qual joguei um pré-release onde dois jogadores da loja trocaram cartas e o juiz e loja acobertaram pois era vantajoso para eles, e com essa experiência eu passei um tempo sem jogar qualquer evento da loja pois não via credibilidade, até achar a loja que adotei por muitos anos enquanto morava no Rio de Janeiro. Foi com muito esforço que o pessoal gente boa da loja foi alterando esse cenário, até o atual, em que todos conseguem se sentir bem para conversar sobre basicamente tudo na loja, pois quando aparece um jogador mais tóxico ele acaba sendo ignorado.
Sei que a comunidade do Magic não é de maioria tóxica e isto me anima sempre a voltar a fazer parte dela, e espero que com o tempo os tóxicos sejam raros, pois infelizmente ainda não são.


A conclusão

Nossa relação com a comunidade é de mutualidade e coexistência. O corpo de juízes sem torneios para apitar ou uma comunidade para contribuir e representar é descartável. Assim como uma comunidade sem um alicerce que possa contribuir com uma gestão justa das regras e um bastião que simbolize ideais de boa conduta e colaboratividade, acaba por desandar em jogos sem o viés da diversão mútua e segregação de grupos, promovendo desunião e, fatalmente, o parcial fim das atividades de forma comunitária, o qual eu já tive o desprazer de testemunhar como jogador diversas vezes.

Façamos com amor o nosso papel em representar o Magic: The Gathering em cada comunidade e que com o exemplo nós possamos cativar e motivar a todos.

Keep it fair; keep it fun

Grande abraço e vamos lá!

Att.
Bruno ‘Toten’ Benatti
Juiz Nível 1, Goiânia – GO, Brasil

 

One thought on “Magic, a Comunidade e a Toxicidade

  1. Bom dia Toten.
    Antes de mais nada, que texto maravilhoso, espero que muitos leiam e entendam a finalidade de seu discurso que em opinião é irrepreensível.
    Você tem todo nosso apoio, conte conosco sempre.
    Parabéns novamente.
    Abraço,
    Clayton Martins
    Paladins Games Store
    Goiânia – Goiás

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