Morte por mil cortes de papel

Escrito por Thea Miller, originalmente em TCG Player. Traduzido por Camila Paneghine.

Faz cerca de três meses desde que você descobriu Magic: The Gathering, e fez o possível para se envolver com o jogo o máximo possível. Você joga Magic Duels no celular enquanto está no transporte, criou um deck Standard super bagunçado com alguns boosters perdidos e assiste transmissões de jogadores profissionais no Twitch antes de ir para cama. Você entende o básico do jogo, então é hora de dar o próximo passo: jogar um evento sancionado na sua loja local.

Antes do torneio você se prepara, passa maquiagem, e escolhe uma roupa legal que vai fazer com que se sinta confortável e confiante durante o dia. Você entra na loja e sente uma mistura de empolgação e nervosismo – é sua primeira vez jogando Magic com cartas físicas e outras pessoas! O atendente parece surpreso que você está se inscrevendo para o draft, e joga um pouco de conversa fora. Depois de pagar, você vai até as mesas e examina seus oponentes. Não há nenhuma outra mulher inscrita para o torneio, e antes mesmo de o torneio começar você imagina, “Eu deveria mesmo estar aqui?”

O juiz anuncia as posições para a mesa do draft chamando o primeiro e o último nome de todos – exceto você. Não é necessário especificar um sobrenome quando não há chance de um nome feminino duplicado. Enquanto esperam pelos boosters serem entregues, os homens na mesa conversam uns com os outros sobre os cards que eles querem pegar e os arquétipos que esperam montar. Você concorda com uma opinião sobre uma rara que conseguiu recentemente. Há uma resposta fraca da mesa e você é dispensada rapidamente. Pacotes são abertos e a conversa na mesa e piadas internas continuam. Você se sente invisível e até questiona sua decisão de vir a um torneio real.

A parte de draft acaba. Você está jogando um draft de Rivais de Ixalan, e você foi sortuda o suficiente para montar um arquétipo de Vampiros. Você começa a construir seu deck e alguém pergunta, “Ah, estou surpreso que você esteja no Preto e Branco. O que você pegou no lugar do Empalar que você me passou no segundo booster?” Você não se lembra, mas se encontra no meio de uma explicação não solicitada de poder de cards e sugestões para o seu deck. Você fica ambivalente sobre receber a ajuda. “Este é meu primeiro draft de todo modo, então eu deveria escutar? Ou eu deveria tentar construir o deck por mim mesma?” você pensa consigo mesma. O torneio nem começou ainda, e tudo sobre o ambiente e as interações até agora fazem você repensar a sua decisão de se inscrever no torneio.

Os emparceiramentos da primeira rodada são postados. Você procura no papel, encontra seu nome, e segue para a mesa. Você posiciona seu playmat e contador de vida na mesa e começa a embaralhar seus cards. Um homem senta na sua frente e joga conversa fora antes do jogo. Algumas bandeiras vermelhas são levantadas enquanto você tenta descobrir se ele está simplesmente sendo amigável ou tentando dar em cima de você. Você começa a se arrepender de usar essa saia maxi linda. O jogo começa, e enquanto você joga ele se adianta em comentar e “corrigir” suas decisões de jogo.

”Bem, eu provavelmente não faria isso.”

”O melhor bloqueio é na verdade este.”

”Eu vou deixar você voltar nisso.”

Você perde o jogo 0-2, e ele pergunta ”Posso ver seu deck?” Como uma nova jogadora, você assume que é inteligente receber a ajuda. Ele faz todos os tipos de sugestões para seu deck e explica porque algumas cartas são melhores que outras. Você está feliz por receber ajuda, porém se sente em conflito pois gostaria de aprender as coisas por você mesma. Depois de completar a crítica ao deck, ele continua a conversar com você e pergunta coisas sobre sua vida pessoal. Ele é legal e parece inofensivo, então você continua com aquilo. A próxima rodada começa em dez minutos. Você se desculpa e vai usar banheiro antes da rodada começar – não há assento ou papel. Você entra levemente em pânico, mas faz funcionar.

Rodada dois. Você é cumprimentada com o mesmo entusiasmo, simpatia e conversas como na primeira rodada. ”Wow, jogadores de Magic são uma comunidade amigável. Talvez eu esteja nervosa por nada…” você pensa para si mesma. Você perdeu o primeiro jogo e seu oponente casualmente fala sobre como é ser um novo jogador e te dá mais algumas dicas. Você começa a jogar um pouco melhor e vence o segundo jogo. Quase instantaneamente, o tom do oponente muda, e não providencia mais dicas ou assistência. Jogo três. O oponente começa e faz um mulligan para seis. ”Acho que vou manter”, ele diz, começando a ficar agitado. O jogo está acirrado, porém você consegue vencer. Toda a simpatia do começo da rodada desapareceu. Ele não fala bom jogo, preenche a slip, deixa na mesa, e vai conversar com alguns amigos. Você está animada com a vitória, mas esse sentimento é sufocado pelo desconforto causado pela reação do oponente.

Esta rodada terminou mais rápido que a anterior, então você senta em uma mesa e espera a próxima começar. Você está no celular e observa ao seu redor e nota que há bastante atividade acontecendo. Pessoas estão jogando, trocando cartas ou simplesmente se divertindo. Você trouxe seu deck Standard improvisado e uma pequena pasta de trocas, mas ninguém conversa com você durante o tempo livre. Está tudo bem – você lembra a si mesma que você é a garota nova e fazer amigos leva tempo. De canto do ouvido, você ouve seu oponente anterior falando com seus amigos. ”Sim, ela somente teve sorte. Eu não acredito que fiz mulligan para seis e a mão que eu mantive não era boa de qualquer forma. Este deveria ser um deck de 4-0, portanto eu creio que venço as próximas duas rodadas.”

Cerca de duas horas depois, o torneio acaba. Você terminou com um resultado de 1-3, e não se sente particularmente feliz por aquela vitória se foi somente sorte como o cara falou. Por outro lado, você se divertiu! Na maior parte do tempo, as pessoas foram legais com você e pareceu que queriam conhecer você melhor. Todos queriam ajudar com seu deck e te deram algumas dicas úteis para seus drafts futuros. Você decide voltar toda semana. Aquele um cara que ficou com raiva? Ele provavelmente estava tendo um dia ruim e seu deck parecia realmente forte. Todo mundo começa de baixo, então você precisa somente continuar melhorando e ser mais sociável – os amigos, os jogos paralelos, e interações sociais mais positivas vão começar a vir. Talvez na próxima mais mulheres vão aparecer e você não vai se sentir tão deslocada.

Você volta nas próximas semanas e lentamente melhora. Seus resultados 0-3 e 1-3 mudam para consistentes 2-2s e você conhece melhor o formato. Semanas jogando nos eventos e desenvolvendo fortes bases, você se vê nas mesmas conversações repetitivas.

”Você é nova no jogo?”

”Você já conhece algum dos outros formatos?”

”Seu namorado que te ensinou a jogar?”

”Na verdade, esta é provavelmente uma linha de jogo melhor…”

Essas conversas repetidas começam a se tornar irritantes e exaustivas. O que você antes pensou que fosse amigável se tornou arrogante, indesejado e as vezes assustador. Você se sente presa quando homens falam com você, mas não quer ferir os sentimentos de ninguém então continua a sorrir e acenar. Ocasionalmente você é pareada contra outra jogadora e pensa que pode ser uma ótima oportunidade de fazer uma amiga. No entanto, você só a vê uma ou duas vezes na loja e depois ela nunca mais volta. A melhora nas suas vitórias levam a um aumento de jogadores com raiva, e mais comentários sobre ”ter sorte”. A essa altura, você montou um deck de Commander desde o início, comprou mais boosters para aumentar suas cartas para troca, e demonstrou ter mais maestria no jogo para seus oponentes, mas não consegue evitar de se sentir sozinha e isolada entre as rodadas. As pessoas raramente te chamam para jogos paralelos, sua pasta de trocas é constantemente ignorada, e você parece nunca conseguir construir a comunicação positiva que os outros jogadores engatam. O banheiro passa a ser seu plano de escape caso um homem converse com você por muito tempo, de forma que você se lembra de trazer lenços umedecidos e álcool gel em sua bolsa. Você ainda ama Magic, mas jogar pessoalmente não…bem, não é tão divertido quanto você imaginava inicialmente…

O tempo passa. Você ainda está ficando melhor no jogo porque agora você joga Magic Online entre os drafts. Mas não há razão para ir toda semana mais – é muito desconfortável. Então você talvez vá uma semana sim, uma semana não. As conversas, afirmações negativas, e interações indesejadas continuam em todo e qualquer torneio, apesar de seus esforços. Não importa o quanto você melhore, os jogadores da loja a veem como a ”jogadora token”. Você sente como se tivesse de se esforçar duas vezes mais que os homens que tem metade dos resultados e reconhecimento. Drafts semana sim, semana não se tornam mensais – você só vai se tiver um amigo para acompanhar você e combater a solidão e o desconforto.

Passaram-se seis meses desde que começou a jogar em eventos sancionados. Você passou a se vestir de forma mais casual para mesclar com os outros caras, mas você ainda se sente estranha. Os jogadores homens ainda são amigáveis – alguns até demais – mas ninguém é seu amigo. Sem amigos, você nunca desenvolveu um grupo de jogo, e ainda é uma raridade ser chamada para jogar entre as rodadas dos drafts. Você somente foi chamada para trocas uma ou duas vezes nos últimos meses, e quando você pergunta se pode fazer trocas com alguém, eles rapidamente dispensam sua pasta. Sua coleção está severamente deficiente, e você não consegue pegar as cartas para montar aquele deck barato Modern que gostaria de testar. Depois de todo esse tempo investindo na comunidade, você nunca se sentiu completamente aceita na loja local, apesar de toda simpatia e ajuda que recebeu. Pensando melhor, tudo pareceu falso e você se pergunta se as pessoas estavam sendo tão ”prestativas” porque você é mulher.

Outro mês passa. Você termina 3-1 pela primeira vez. Quatro boosters da última coleção – demais! Você puxa seu celular para mandar uma mensagem para um amigo e contar seu resultado! Mas de canto de ouvido, você ouve ”Sim; ela tinha uma Fênix Reavivante no deck e ganhou todos os jogos dela com isso. Não tinha como ela não vencer com uma bomba como aquela.”

Algo dentro de você quebra.

Não vale mais a pena. Não importa o que você faça, você não consegue uma posição segura nesta comunidade. A maior parte das suas vitórias é avaliada minuciosamente e com dúvida. Você tem jogado Magic de papel por sete meses e ainda perguntam se você é uma jogadora nova. Você pode jogar perfeitamente bem sozinha mas os homens na loja insistem em dar dicas não solicitadas – assumindo que você perderá para eles. Uma quantidade desconfortável de jogadores ainda reagem mal ao perder para você. Quando você começou a jogar eventos sancionados, você racionalizou tudo com ”é só porque eu sou nova”. Mas você não é mais nova. E a mesma merda continua acontecendo não importa o quanto você tente se mesclar e ser aceita como uma jogadora séria.

Você ainda ama Magic. Mas depois de todo esse tempo, as interações pequenas cobraram seu preço e você finalmente conclui, ”Talvez torneios de Magic não sejam para mim.”

* * *

Uma das razões de discutir sexismo no Magic ser improdutivo é que muitos homens veem as discussões como um ataque pessoal. As discussões no Reddit são fechadas, contas no Twitter são atacadas com comentários maldosos e nos vemos de volta à primeira etapa. TODAS AS VEZES. E todas as vezes que isso acontece, mais e mais mulheres ficam receosas de falar sobre suas experiências e oferecer feedback em como tornar o jogo mais inclusivo. Para clarificar: discussões sobre sexismo NÃO são ataques pessoais aos homens, e aquelas de nós que falamos sobre isso não odeiam homens. Muitas mulheres gostam da companhia de um companheiro, amigos homens, e honestamente a maioria dos homens que jogam Magic são pessoas legais. No entanto, mulheres estão constantemente sujeitas a comportamentos, premissas e avanços desconfortáveis, a uma taxa problemática, que os homens não vão experenciar. Quando uma mulher fala, não é um ataque pessoal – é, simplesmente, um reconhecimento de que algo está errado e há a oportunidade de mudar. Mesmo que em 90% dos torneios de Magic tudo corra bem, há 10% nos quais mulheres passam por situações desconfortáveis que são geralmente tão impactantes que elas impedem as mulheres de se empenhar de forma visível no hobby. O fato de essas discussões estarem tão propensas a moderação pesada é um forte indicativo do ambiente hostil com o qual as mulheres lidam.

“Mulheres no Magic” tem sido uma conversa recorrente na comunidade por muitos anos, quase sempre seguida de depreciação, negação e assédio para aqueles que escolhem discutir isso. Magic é atualmente um hobby dominado por homens e ninguém quer acreditar que eles mesmos, seus amigos, ou seus conhecidos de loja sejam sexistas. É uma verdade desconfortável para encarar. De acordo com informações recentemente lançadas por Mark Rosewater, cerca de 38% de todos os jogadores de Magic são mulheres. A pergunta que não quer calar é: se essa porcentagem é correta, então porque há tão poucas mulheres nos eventos competitivos de Magic? Nós não podemos responder essa pergunta rapidamente, sem reconhecer o sexismo sistemático que cria barreiras invisíveis para as mulheres que tentam avançar no jogo.

Eu sei que “sexismo” é uma palavra carregada que deixa muitas pessoas com raiva. Mas isso é ok. Nós podemos, e definitivamente deveríamos, falar abertamente sobre isso como uma comunidade. Magic é o melhor jogo do mundo, e nós queremos que esse jogo cresça e que qualquer jogador – independente de raça, gênero, sexualidade ou experiência de vida – possa aproveitá-lo. De forma a ter uma discussão produtiva sobre sexismo, os jogadores precisam entender o que exatamente é sexismo e como ele se manifesta no dia-a-dia. Quando a maioria das pessoas – especialmente homens – pensam sobre sexismo, eles costumam pensar nos “grandes” comportamentos ofensivos que são bastante visíveis e problemáticos. Coisas como abusos, exclusão descarada, ou atitudes no trabalho que remetem aos anos de 1950 vem à cabeça. Muitos jogadores repetem o lugar-comum, “Bem, eu nunca vi sexismo na MINHA LOJA”. Sendo justa, a maioria dos jogadores provavelmente não viu isso – justamente porque a maior parte do sexismo que seguram as mulheres de avançar em espaços predominantemente masculinos é sutil e invisível.

Mulheres no Magic tem a falta de um capital social, que são os relacionamentos interpessoais, contatos, recursos e outros ativos de uma sociedade ou grupo que podem ser usados para ganhar vantagem e mobilidade. Além disso, mulheres também estão desproporcionalmente sujeitas a micro-agressões indesejadas e desagradáveis: os aparentemente pequenos, indiretos, sutis ou não intencionais atos de discriminação contra membros de um grupo marginalizado. Na narrativa ficcional inicial, a narradora faz os mesmo passos que os homens fazem de forma a aprender o jogo que ela ama. No entanto, os comportamentos repetitivos, indesejados, intrusivos da base de jogadores masculinos deixam ela de fora de ambientar-se totalmente e desenvolver habilidades, recursos, e uma comunidade que permitiria com que ela jogasse no mesmo nível de seus oponentes masculinos.

Quando a comunidade de Magic discute sexismo, a maior parte das discussões fica ao redor de um conhecimento errôneo sobre o que é realmente sexismo e como isso impacta os jogadores. Eu já ouvi diversas vezes, “Bem, mulheres são livres para se inscrever e jogar como todo mundo! Nós não precisamos falar sobre sexismo” Sim…até onde eu sei, não há nenhuma placa de MULHERES NÃO SÃO PERMITIDAS penduradas na frente da maioria das lojas locais. Mulheres são livres para comprar cards, se inscrever e jogar nos torneios como todo mundo. No entanto, estes atos descarados de exclusão não são o que a maioria das mulheres querem dizer quando elas falam sobre sexismo. Nós, como uma comunidade, precisamos mudar a maneira como pensamos  sobre sexismo de forma a discutir melhor, e então começar a fazer mudanças em um nível estrutural.

A boa notícia é que o sexismo estrutural pode ser mudado. Há muitas coisas que podemos fazer enquanto comunidade para tornar o Magic mais acolhedor para mulheres, envolver mulheres de uma forma mais significativa, e ter certeza de que elas recebam uma maior parte de capital social. De forma a combater o sexismo no nível estrutural como uma comunidade, eu apresento cinco áreas para focar no que pode ser melhorado. Isso vai dar algum trabalho, mas estou confiante que a comunidade do Magic pode mudar de forma positiva com o tempo, se nós mudarmos nossa abordagem.

Entender que a maior parte do sexismo é encoberta

Não é suficiente falar o quanto a maior parte do sexismo é invisível e difícil de notar, especialmente se você nunca foi sujeito a isso pessoalmente. Você possivelmente já ouviu o termo Glass Ceiling (NT: uma tradução literal seria teto de vidro, porém o significado é diferente do que a autora quis passar no texto); definido como uma barreira não oficial, porém reconhecida, que impede o avanço em uma profissão, que afeta especialmente mulheres e membros de minorias. Magic também possui um glass ceiling, que é o motivo porque vemos tão poucas mulheres nos FNM, no Pro Tour e trabalhando como juízas.

Se uma mulher chega a um juiz, organizador ou expectador angustiada sobre sexismo e eles não “viram” isso: dê ouvidos a ela e tome as devidas providências contra o comportamento sexista se você está em uma posição de fazer isso. Ainda que acusem as mulheres de falsa acusação ou de serem “vítimas profissionais”, essas acusações não passam de uma forma de manterem mulheres com medo, em silêncio e “no seu lugar”. Mulheres tem muito pouco a ganhar quando falam, e na maior parte das vezes o que ganhamos é ser alvo de abusos online e desdém de nossos pares masculinos. É um ciclo vicioso e invisível que segura as mulheres de avançar importantes discussões e mudanças estruturais falham ou nem saem do papel – mas isso não é exatamente algo tangível, que possamos ver.

Suposições são prejudiciais

Mulheres lidam com um número muito maior de suposições que homens no Magic. Premissas essas que, mesmo que vistas como “positivas”, são prejudiciais a minorias. A maior parte das mulheres já ouviu uma das seguintes frases ou uma variante delas:

  • “Foi seu namorado que te ensinou a jogar?”
  • “Este é seu primeiro torneio?”
  • “Você é nova no Magic?”
  • “Você até que é boa pra uma mulher!”
  • “Você não parece como uma jogadora de Magic.”
  • “Eu não conheço muitas mulheres que jogam Magic.”

As frases acima são exemplos de micro-agressões. Lembre-se, afirmações como estas ainda podem ter conotações e indicações sexistas, mesmo que essa não fosse a intenção. Para a pessoa que está falando isso, provavelmente parece inofensivo ou inocente. No entanto, essas afirmações carregam um significado negativo com elas. Novos jogadores são normalmente vistos com menos habilidade, mulheres sempre tem alguém que as ensinou a jogar Magic e não entram no jogo por si mesmas, mulheres têm menos habilidade que homens ou mulheres simplesmente não gostam de Magic. Nenhuma dessas é verdade! Mesmo que você não esteja dizendo essas coisas diretamente, há uma implicação muito forte na linguagem utilizada. Usar uma linguagem que não assuma nada é um grande passo para melhorar a experiência de alguém e criar um ambiente mais amigável. Se você quer manter uma conversa com seu oponente sem assumir nada, talvez seja melhor dizer algo como:

  • “Há quanto tempo você joga Magic?”
  • “O que você pensa do atual ambiente do Limitado?”
  • “Que formatos você e seus amigos normalmente jogam?”

Palavras são poderosas, e afirmações que assumem coisas sutilmente reforçam ideias sexistas e esteriótipos que excluem jogadoras. Usar uma linguagem inclusiva e que não assume nada cultiva um ambiente mais positivo para todos os jogadores.

Representação importa

Ao longo dos últimos anos, Wizards tem feito um ótimo trabalho aumentando a representação e a diversidade das funcionárias, analistas de cobertura, histórias de personagens e arte dos cards. Se os membros de um grupo pouco representado não vêem membros de seu grupo atuando, eles são menos propensos a participar. O simples ato de entrar em uma loja, se inscrever e sentar para ”jogar com os caras” requer bastante força mental. Entrar em um ambiente com talvez de  0 a 4 outras jogadoras, nenhuma funcionária e nenhuma juíza é incrivelmente intimidador e imediatamente leva a pensamentos de dúvida sobre participar naquele espaço. Há tantas mulheres incríveis na comunidade, e algo pequeno como ver uma juíza na sua loja pode ajudar a reafirmar para as jogadoras de que o jogo é para todos. Ian Doty recentemente escreveu um artigo sobre a diversidade no programa de juízes, e o Coordenador do Programa Riki Hayashi comentou porque aumentar as oportunidades para juízas é importante para a comunidade do Magic. Quando as barreiras estruturais invisíveis são removidas e as mulheres se tornam cada vez mais visíveis na comunidade em posições de destaque (como comentaristas, juízas, criadoras de conteúdo, etc.), mais mulheres serão incentivadas a participar do espaço físico do Magic.

Porém, há limites para o que a Wizards pode fazer enquanto empresa. Eles mostraram diversas vezes que estão comprometidos com a diversidade e ter o Magic como um jogo equivalente e amigável para todos. Mas mudanças ainda precisam ocorrer nos níveis menores dentro das comunidades, para garantir que todas as pessoas possam aproveitar o Magic sem medo.

Reconheça informações e reivindicações anedóticas

Cada vez que uma mulher fala sobre sexismo no Magic – seja em um artigo, vlog, ou mesmo um tweet – homens (e as vezes outras mulheres) correm e inundam com suas próprias experiências anedóticas para reduzir a reclamação original. As respostas mais comuns são ”Como uma mulher, eu nunca passei por sexismo na minha loja local!” ou ”Mulheres jogam na minha loja local e eu nunca testemunhei sexismo nenhuma vez!”.

A realidade é que a vasta maioria das mulheres que participou em eventos de Magic tem pelo menos uma, geralmente muitas, história negativa sobre tratamentos sexistas. Se você é uma das mulheres que nunca passou por isso, isto é fantástico e é completamente possível que você possui um grupo inclusivo de jogadores na sua loja. Todas nós desejamos poder experimentar isto e ninguém está menosprezando essa experiência. Porém existe uma montanha de evidências de mulheres sugerindo que experiências negativas em um espaço de Magic dominado por homens é a norma, e este é o problema. Mesmo que uma mulher hipoteticamente possua uma média de 80% de experiências positivas jogando Magic, estes 20% ainda são tão frequentes e ruins o suficiente para segurar as mulheres de consistentemente retornar e participar em espaços físicos de Magic. Esses 20%, mesmo que pareçam pouco, são a raíz de um problema estrutural e o porquê que essas experiências negativas devem ser ouvidas e discutidas, para que mudanças positivas sejam realizadas. Mesmo se você frequenta uma loja incrível e inclusiva, comparar suas experiências positivas em resposta às experiências negativas de alguém prejudica e diminui a validade destas reivindicações e esconde o progresso da comunidade. Nós devemos discutir e celebrar a positividade na comunidade, mas experiências negativas precisam ser discutidas, desconstruídas e entendidas em seu próprio contexto.

Trate mulheres como iguais

Mais do que tudo, mulheres querem ser tratadas como jogadoras iguais, sérias e competitivas. Muitas de nós não participamos de um torneio para achar um namorado ou para ser apadrinhadas e mimadas. Nós só queremos jogar Magic da mesma forma que todo mundo. Uma das facetas mais intimidantes de participar de um torneio de Magic é ser imediatamente taxada de ”diferente” simplesmente por ser uma jogadora mulher. É difícil entrar em um grupo porque não somos ”um dos caras”. Raramente perguntam para nós sobre trocas ou jogos paralelos, e nós temos pouquíssimo capital social para influenciar interações significativas que iriam nos auxiliar a permanecer no jogo. Nós estamos sujeitas a comportamentos, micro-agressões, e questões que nos fazem sentir estranhas ou desconfortáveis. Como um homem, você pode não ver porque perguntar ”Seu namorado que te ensinou a jogar?” é tão nocivo. Mas pense assim: você perguntaria a outro cara: ”Sua namorada que te ensinou a jogar?” Definitivamente não.

Eu não estou dizendo que todos os jogadores de Magic são horríveis. Nenhuma mulher que está falando sobre sexismo está falando isso. Honestamente, a maior parte dos jogadores são pessoas decentes que só querem se divertir. No entanto, em algum momento nós precisamos reconhecer que as barreiras estruturais impregnadas em nossa cultura e sociedade infiltraram-se no Magic e mantém as mulheres longe de se superar e avançar da mesma forma que os jogadores homens.

Uma das depreciações mais comuns ao redor da discussão do sexismo no Magic é que é tudo ”político”, e política não deveria ser parte do jogo. Gostando disso ou não, a mídia que nós consumimos e as comunidades que participamos reflete a desigualdade diária do mundo ao nosso redor. A Wizards deixou bem claro que Magic é um jogo para todos. Se nós queremos ter certeza de que todos se sintam confortáveis participando no Magic e possuam uma chance justa de sucesso, desigualdades precisam ser honestamente discutidas, confrontadas e erradicadas.

Isto não é uma coisa ruim. Isto não é uma ”sinalização de virtudes”. É simplesmente reconhecer a existência de um problema – e que nós podemos melhorar. Descartar as desigualdades vai reduzir as barreiras de entrada, permitindo uma grande variedade de jogadores avançar, e ajudar o jogo que tanto amamos a crescer. Isto é definitivamente uma vitória para todos. Dizer ”Não traga política para o jogo” é uma afirmação politicamente carregada e que implica um privilégio social imenso e dispensa completamente a realidade diária de grupos marginalizados, por ser simples ”política”. Não há absolutamente nada político sobre reconhecer que certos grupos sociais estão em desvantagem e que passos podem ser tomados dentro da comunidade para criar um espaço mais justo e igual para todos.

É fácil de manter um status quo que exclui. É fácil criticar algo que você não vivenciou. É fácil desqualificar histórias de vozes marginalizadas. Mas nós, como uma comunidade, podemos fazer mudanças estruturais significativas – mesmo que sejam difíceis e precisam de algum trabalho. Então a próxima vez que você ouvir ”Pare de politizar meu jogo; Nós só queremos jogar!” lembre-se disto: Não é só seu jogo – e nós queremos jogar também.

Thea
@femmtg

Nota da tradutora: Essa tirinha, por Cardboard Crack, complementa o artigo, ainda que não esteja incluída na publicação original:

Resultado de imagem para cardboard crack magic sexism

“- Ainda que a comunidade do Magic tenha feito progressos nos últimos anos, ainda há problemas com sexismo e lojas que não são amigáveis para mulheres.

– Mas como jogadores, nós podemos fazer uma grande diferença ao fazer as pessoas entenderem o que não é ok e avisar sobre comportamentos questionáveis.

– Jeez! Não posso somente me divertir jogando um jogo sem ter de lidar com todos esses problemas sociais?!

– É a mesma coisa que eu estou pedindo.”

7 thoughts on “Morte por mil cortes de papel

  1. Que texto incrível. Me fez pensar em um monte de coisa.

    No começo, eu estava cético com alguns argumentos apresentados – de que pedir para ver um deck de draft e sugerir picks seja uma atitude silenciadora, por exemplo -, porque entre os jogadores com quem costumo treinar, essa é uma atitude comum. Entretanto, continuando a ler o texto, pensei que precisava mudar minha ótica e pensar como uma pessoa que está num ambiente opressivo, sufocante, pensaria. E definitivamente concordo que é algo terrível. A complacência, a ajuda egocêntrica, tudo isso contribui para esta distância encontrada relativa às mulheres e homens dentro de um ambiente competitivo.

    Pude refletir como várias dessas atitudes são coisas que eu mesmo, que me considero mais ou menos mente aberta nesse assunto, propago e sem querer repito.

    É legal encontrar o machista latente que temos dentro de nós e buscar mudá-lo, e este texto cumpre muito bem esse propósito. Reiterando um comentário, obrigado pela postagem.

  2. Hebert. Mesmo discordando de você, arrogância e complexibilidade não são características masculinas. Seu argumento não sustenta…

    Muito bom o texto. Agora sei como abordar “os caras” pra dizer que o que eles tão dizendo não é legal, mesmo que pareça inofensivo.

  3. Hugo, apenas uma correção: a autora do texto é a americana Thea Miller, e o artigo foi traduzido pela Camila Paneghine. Eu sou apenas uma administradora do blog e fiz a edição para postar o trabalho delas aqui.

    Sobre o exemplo: não sei se você vê assim, mas muitas vezes quando uma menina ouve “não tem muitas mulheres que jogam” o sentimento de “eu talvez não devia estar aqui” é um pouco reforçado. Provavelmente a pessoa que disse isso não quis causar isso, mas eu consigo pensar em outros jeitos de iniciar uma conversa sem necessariamente se atentar ao fato de ”hey, temos uma mulher jogando aqui” que evitaria esse desconforto.

    Muitas meninas acabam desistindo de frequentar esses ambientes justamente por perderem a vontade de repetidamente e repetidamente bater de frente com a comunidade masculina para terem seu espaço respeitado. Eu gosto bastante da atitude da sua esposa e que bom que ela persistiu e conseguiu fazer isso (de certa forma eu me encaixo nessa descrição também), mas eu de forma nenhuma julgo as meninas que preferiram não insistir pois se estressaram demais.

    Muito obrigada pelo seu comentário e por estar aberto a participar da discussão!!

  4. Perfeito texto! Que seja uma ajuda na hora de conscientizar os players sobre seu comportamento em relação às mulheres no ambiente de jogo. Deixa as mina jogar em paz!

  5. Bom dia Bruna,
    eu gostei de ler seu texto e vou passar minha impressão ao longo dele. Prometo não ser extenso!
    Eu fui tentando perceber seu ponto de vista, já que para o homem não é fácil perceber o mundo como uma mulher. E eu acho que consegui até chegar no trecho “Entender que a maior parte do sexismo é encoberta”.
    Nessa parte, confesso que achei exagerados e melindrosos alguns dos exemplos. Especialmente o “Eu não conheço muitas mulheres que jogam Magic.” Dizer algo como “Você até que é boa pra uma mulher!” é nitidamente sexista. Está estampado. Mas o anterior, não me soa assim. Pelo contrário, parece o momento apropriado para a mulher deixar claro o porquê disso. E o melhor, sob uma ótica desconhecida ao homem.
    Para mim, pareceu até hipócrita quando você diz “Usar uma linguagem que não assuma nada é um grande passo para melhorar a experiência de alguém e criar um ambiente mais amigável.”, pois a meu ver não é o que você praticou (lembrando do exemplo inicial que dei). Pois em vez de assumir sexismo, a mulher poderia assumir que o homem simplesmente não se atentou a esse fato, mas que está disposto a conversar a respeito.
    E vou além, a mulher deve manifestar seu descontentamento para provocar a mudança de comportamento na comunidade masculina.
    Se minha esposa ouvisse “Você não parece como uma jogadora de Magic.”, ela responderia sarcasticamente de modo a fazer a pessoa perceber que está sendo inconveniente.

    Mas, como não abondono uma leitura que comecei, continuei e cheguei na MELHOR parte do seu texto: “Trate mulheres como iguais”. Esse trecho é fundamental para os homens. E digo que vale para as mulheres também.
    Pra os homens que não conseguem entender o que as mulheres estão reportando, pense no seguinte: É como se fosse um homem numa escola de balé, ou algo assim… Para o homem, ser questionado de sua masculinidade a todo momento num ambiente fortemente feminino.

    Aos homens, trate as mulheres igualmente e respeitem os limites. Mulheres, digam aos homens seu descontentamento e não assumam que todo comentário é também sexista.

  6. Não são vistas muitas mulheres em eventos competitivos de Magic porquê são eventos de ambiente pesado (tipo poker) e o “for fun” é muito melhor! Sou jogador e lojista. Adoro Magic e detesto eventos competitivos. Jogadores “pro” são, em sua maioria, pessoas arrogantes e complexadas.

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